domingo, abril 20, 2008

ACONTECEU ...

Decorria o ano de 2003, quando numa dada noite entraram dois jovens pela porta do meu escritório, um era meu conhecido e colaborador ocasional, na área informática em que era e é um génio, o outro era-me completamente desconhecido. Depois das apresentações fiquei a saber que este último, o Francisco (nome fictício), era desenhador e maquetista, que estava na altura desempregado e à procura de ocupação.

Regra geral não costumo fazer juízos apressados sobre as pessoas baseando-me apenas no aspecto das mesmas, ou nas apresentações, mas algo me indicava que aquele jovem queria mesmo trabalhar. Por acaso tinha em mãos um trabalho que requeria uma maqueta e a conversa virou-se para o tema e depois de algumas trocas de impressões e do visionamento de umas plantas, decidi entregar-lhe o trabalho.

Dentro do prazo previsto, o Francisco entregou-me o trabalho feito, bastante rigoroso e com uma qualidade irrepreensível, pelo que continuei a recorrer aos seus serviços daí em diante. Durante dois anos manteve-se esta colaboração perfeita, e comecei a conhecer o pessoalmente o Francisco, que era um jovem calmo, muito bem educado, bastante sério e algo reservado, que namorava uma moça lindíssima, a Ana (nome também fictício) que algumas vezes o acompanhava nas visitas ao escritório e à minha casa.

No mês de Novembro de 2005, recebo a altas horas da noite um telefonema do António, o amigo que nos tinha apresentado, dizendo que o Francisco tinha morrido há poucas horas. Fiquei espantado com a notícia, tanto mais que já há três ou quatro semanas lhe tinha perdido o rasto, porque ele não me respondia nem aos telefonemas nem aos mails, e no último contacto que tínhamos tido, me dissera que estava a pensar em casar com a Ana. Mais confuso fiquei ainda quando tive conhecimento que se tinha suicidado.

Os familiares nada me adiantaram sobre o assunto na altura, e tanto a Ana como o António, amigos mais chegados também pareciam não saber nada sobre o assunto. Passados dois anos, num encontro casual com estes dois amigos, a Ana e o António, fizeram questão de abordar o assunto, coisa que nunca tínhamos feito durante esse tempo, e disseram-me que o Francisco se tinha suicidado poucos dias depois de ter tido conhecimento de que estava infectado com o vírus da Sida. Fiquei siderado.

Ele tinha tido um pequeno acidente no seu estúdio, e foi ao hospital para ser cozido num corte numa mão, e a costura acabou por infectar. Voltou ao hospital dois dias depois e ter-lhe-ão feito análises ao sangue enquanto o tratavam, como a ferida continuou a dar problemas voltou lá novamente e acabou por ser informado que estava infectado. Destroçado voltou a casa, onde a notícia caiu com estrondo, e a família reagiu negativamente, ao que me foi dito.

Alguns dias depois, enviou uma carta à Ana, que a recebeu apenas no dia da cremação, contando-lhe detalhadamente o sucedido, pedindo-lhe desculpas por tudo (erros do passado), e dizendo que se sentia incapaz de encarar amigos e conhecidos depois de saber que estava infectado, e que iria pôr termo à vida logo de seguida, como o veio a fazer.

Não consigo condenar este acto, nem sei como reagiria em situação análoga. Lamento o sucedido, perdi um amigo, fiquei mais alerta para este problema, e mais sensível ao sofrimento de quem dele padece, e dos que os rodeiam e sofrem igualmente.

21 comentários:

ANTONIO DELGADO disse...

Uma historia comovente sem dúvida. Uma vez tive uma história parecida mas com um amigo que era critico de arte. Ainda hoje não sei a juízo certo qual foi a causa do seu suicídio. Passou-se nos anos oitenta e resume-se ao seguinte: ele emprestou-me um livro sobre teoria de arte e nunca mais contactou nem aparecia no café onde o nosso grupo se reunia, como há muito que não aparecia pensávamos que estava em França onde passava temporadas. Entretanto eu fui para fora de Portugal durante dois anos e quando cheguei tive necessitava de falar com ele e pretendia também entregar-lhe o livro qual foi o meu espanto quando ao perguntar por ele para a sua casa me perguntaram quem eu era? Eu respondi que era o António Delgado e era um amigo da universidade. Depois responderam-me: mas não sabe ele morreu: suicidou-se com uma corda, fazia quase três anos? Eu com a voz seca e tremula respondi: desculpe não sabia e peço desculpa pela inoportunidade . Não pode imaginar o flash que senti. Nós os amigos supomos que ele se suicidou devido a uma crise sentimental.

Um abraço
António Delgado

Laurentina disse...

Tinhas que me fazer chorar Zé!!
E de caminho lembraste-me de um compromisso que tenho e que ainda não dei seguimento...falha minha sem perdão.

Bom domingo

beijão grande

Odele Souza disse...

Um texto que emociona. O suicídio de alguém é sempre algo que choca e deixa-nos perplexos, sem saber o que dizer e até os sentimentos ficam emaranhados.

Te deixo um abraço e o desejo de um bom domingo.

Anónimo disse...

Não vou comentar o teu post pq é mt pessoal.


Atão e as t-shirts agradaram aos teus amigos? :-)

Bjs de bom domingo

SILÊNCIO CULPADO disse...

Zé Povinho
Primeiro que tudo meu amigo abraço-te por teres abraçado esta causa que está a ser debatida no Sidadania e exactamente este post vem de encontro à vertente do debate: a quem contar quando se é infectado e que apoios são disponibilizados ao doente (seja este ou outro)quando está perante uma situação irredutível.
Vou fazer uma chamada no Sidadania, cujo debate estou a moderar a pedido do Raul, para este teu post. Pedia-te por isso que mantivesses o post mais um dia ou dois.

Isamar disse...

Amigo, deixa-me que assim te trate, o realismo com que contaste este caso deixou-me profundamente comovida. Conheci alguns casos mas nenhum teve o desfecho deste.
Bem hajas por teres conseguido relatá-lo desta forma, perpassado de sentimento que me atingiu e que , certamente, não deixará indiferente ninguém que te leia.

Beijinhos

R.Almeida disse...

Gostei do texto que publicaste.Embora relate um drama e quando a morte está presente é sempre triste, ele despertará as mentes daqueles que teimam em considerar a infecção pelo HIV, como uma doença que já não causa grandes problemas.
Infelizmente esse teu amigo não é caso único e eu conheço alguns casos que tiveram o mesmo desfecho.
O Sidadania sente-se feliz com a iniciativa "Um texto sobre SIDA",e textos como o que aqui publicas, mostram que muitos autores de blogues tiveram a pandemia a cruzar-se no seu caminho através de familiares, amigos ou simplesmente pesssoas conhecidas.
É necessário continuar a lembrar que a SIDA existe e continua a desvastar vidas.É necessário as pessoas mentalizarem-se que sem data nem hora marcada ela pode cruzar-se nas suas vidas e necessitam estar preparados para enfrentar a fera. Bem hajas por ter trazido este tema ao teu blogue.
Um abraço do Raul

papagueno disse...

Nem sei o que dizer, apenas que por vezes o preconceito mata mais do que a doença.
os meus sentimentos e um abraço.

papagueno disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria Romeiras disse...

Uma história forte que para mais forte não é história e pode ser de todos nós. Fazes bem em divulgar porque ainda temos presente o estigma da SIDA e uma doença não é um relatório que julgue o seu portador, pelo contrário. Lamento sempre, nestas situações, o desespero de quem opta por terminar a sua vida porque tenho sempre aquela esperança patética de uma cura descoberta de repente. Mas não sei, nenhum de nós sabe, o que é apanhar com uma sociedade hiper-crítica em cima e com níveis de sofrimento incalculáveis. Um grande abraço, lamento muito a tua perda.

MARIA disse...

Olá Zé,
É extraordinário este relato de vida e ainda bem que o publicou já que esta perspectiva do problema ainda não havia sido dada por nenhum blog, se não estou em erro.
Eu compreendo a decisão do Francisco.
Viver obriga a muita coragem, quantas vezes se não, contra tudo e contra todos, pelo menos, sozinho, entre todos...
A fuga é muitas vezes a via menos dolorosa.
Isto pode cruel, mas é verdade.
Daí a importância de alimentar-mos reciprocamente a nossa coragem e determinação para enfrentar as armadilhas que nos vão confrontando ao longo da vida e de alimentar-mos o nosso espírito de solidariedade, tendo sempre presente que todos possuímos a mesma essência e por vezes certas infelicidades são só uma questão de circunstância que hoje não é a nossa ...

Parabéns pelo seu texto.

Um beijinho muito amigo
da
Maria

C Valente disse...

A vida tm estas estórias que nos dexa um nó na garganta, em respostas nem pergnta. só equações
Sudações amigas

Papoila disse...

Uma história assim contada que me comoveu e me levou às lágrimas.
Beijo

Anónimo disse...

Uma de muitas histórias... é necessário informação muita informação. Um Abraço

carlos filipe disse...

Zé Povinho, Zé Povinho
que texto mais comovente
que revela bem que a sida
ainda assusta muita gente.

E porque deve assustar
mais que qualquer outra doença
se até não é das piores
e há muito quem a vença?

Só porque há aí uns horrores
de gente que não tem presença
a não ser quando castiga
com a Divina Providência?

Zé Povinho, Zé Povinho
meu amigo e companheiro
vamos sempre no caminho
que seja o mais verdadeiro.

Não voltaremos a cara
a quem está a sofrer,
e olharemos com amizade
o pobre que não tem que comer.

Zé Povinho, Zé Povinho
esta causa há-de vencer.

Arrebenta disse...

Sobre o que está a acontecer no "As Vicentinas de Braganza", agradecia que nos visitassem, e se pronunciassem, caso vos interesse o nosso novo dilema/problema

http://asvicentinasdebraganza.blogspot.com/2008/04/nota-constitucional.html#links

Anónimo disse...

Sei que não te foi fácil contar isto,e é por esse motivo que aqui venho dizer que deste um bom contributo para o conhecimento dos dramas que estão por vezes associados às doenças e à intolerância.
Bjos
Rita

Tiago R Cardoso disse...

Uma historia comovente, sem palavras...

Isabel Filipe disse...

Oi Zé,

Impressionante este teu testemunho... desde que me cruzei com o Raul do Sadadania, que tenho lido , um pouco por todo o lado casos vividos na 1ª pessoa, cada um com a sua carga ...

acabam por me faltar as palavras ... sem saber bem o que dizer ...

mas o que podemos dizer sobre estas situações?

beijinhos

Jorge P. Guedes disse...

Um caso humano, triste, mas revelador do choque que uma notícia dessas pode provocar num ser humano que, de repente,vê desabar o mundo perante si e fica sem qualquer capacidade de resposta.
Uma tragédia humana, de contornos absolutamente reais e que, pessoalmente, consigo compreender.
Como o Zé, também eu não sei dizer o que faria em idênticas circunstâncias.

Um abraço.
Jorge P.G.

FERNANDINHA & POEMAS disse...

Olá meu querido amigo Zé, acabei de ler o teu texto, e estou sem palavras com um nó na garganta, com vontade de chorar...É assim a vida!
Tanto preconceito para quê ?
Ainda bem que tiveste coragem para escrever este caso!
Amigo uma boa semana e muitos beijinhos de carinho,
Fernandinha